The language of landscape is our native language. Landscape was the the original dwelling; humans evolved among plants and animals, under the sky, upon the earth, Landscape was the the original dwelling; humans evolved near water. Everyone carries that legacy in body and mind.” The language of landscape, Anne Whiston Spirn
A abordagem da paisagem na arte foi ambígua até ao século XIX. Até esse momento a paisagem foi um pano de fundo, uma actriz secundária de uma peça cujas protagonistas seriam pinturas mitológicas, cenas religiosas ou retratos mais ou menos oficiais. No século XIX, a actriz secundária consegue o papel principal, autonomiza-se, vale por si mesma, sem qualquer necessidade de se complementar com outros temas. Depois de séculos de dependência de acções humanas e sagradas, depois de uma presença acessória e secundarizada, a paisagem passa a ter um tratamento referêncial. Atingido o estatuto maior – o de género, a paisagem evoluirá e todas as possibilidades, todas as composições, serão possíveis. Mas a arte contemporânea não se limitou a tornar a paisagem num novo género espartilhado nas estritas regras das belas-artes. Não. A arte contemporânea conferiu à paisagem a capacidade de se reinventar. Mas de que falamos quando falamos de paisagem? O que encerra em si este conceito? A paisagem será sempre um acto construído. Existe na relação entre a natureza, o meio cultural e a estética. A paisagem é o que permite a fruição estética do território, da natureza. A paisagem anda também associada a uma ideia de reconciliação do homem com a natureza, com o regresso a um estado quase selvagem de comunhão com o mundo. A paisagem dá-nos a oportunidade de recordar uma imagem familiar – de reconhecer um lugar. Concluimos então que o termo paisagem está intrinsecamente ligado à noção de território, natureza e arte. A sua emergência situa-se no Renascimento, a sua autonomia no século XIX. Na contemporaneidade as relações entre natureza e paisagem na arte tornaram-se mais complexas, como afirma Laura Castro, “a arte passou a fazer-se não sobre a natureza, mas na natureza; não representando a natureza, mas apresentando-a; não reproduzindo a natureza, mas utilizando-a; não olhando-a à distância, mas incorporando-a nos seus lugares.” Rita Carreiro é uma das poucas artistas contemporâneas que se tem dedicado quase exclusivamente à pintura de paisagem. A artista tem vindo a desenvolver um projecto onde interroga a relação entre percepção da natureza e a possibilidade contemporânea da sua representação. Como tem sido comum no seu trabalho, a artista centra a sua atenção em registos conceptuais onde a concretização de obras em diferentes media tem apenas um objectivo: o de apresentar uma narrativa auto-biográfica centrada na memória que a artista tem de natureza. Mais do que nos apresentar obras de um verismo empobrecedor, em Rita Carreiro a paisagem é estilizada. A artista transporta para o seu trabalho a experiência do lugar, sintetizando estruturas iconográficas (paisagens) a partir da sua memória de natureza. As suas pinturas e esculturas, correspondem a uma visão idealizada da natureza que a artista domou a partir da memória. No projecto Há coisas que se agarram a nós e nunca mais nos largam , as peças apresentadas são o resultado da memória que Rita Carreiro guarda da sua vivência nos Açores. Vejamos, por exemplo, a sua série Ilhas. Há uma clara relação da paisagem com um local concreto, com a identificação (ou fixação) de um sítio, como se a artista quisesse documentar uma memória. Partilhando com os artistas da land art uma necessidade de envolvimento directo com o meio natural, a artista distancia-se destes ao assumir que a materialização dessa relação se processa por via de construções plásticas alicerçadas em disciplinas artísticas com uma tradição paisagista constante, como é o caso da pintura e da escultura. A artista pinta como se estivesse dentro do lugar, mas a tradução das suas experiências na e com a natureza é apresentada num espaço construído. No trabalho de Rita Carreiro observamos uma harmoniosa convivência entre elementos tradicionais da gramática da pintura de paisagem, numa tradição que nos chega do Renascimento, e elementos contemporâneos dessa gramática. Por um lado, a paisagem condensa a convenção, por exemplo na peça Seascape , onde a linha do horizonte é o elemento organizador da peça que se desenvolve acima ou abaixo da linha central, e por outro, os elementos contemporâneos são predominantes – elementos abstractos, geométricos, desconstrução da paisagem ( Paisagem construída, Paisgem nocturna, Paisagens portáteis ). No projecto Há coisas que se agarram a nós e nunca mais nos largam , Rita Carreiro dá continuidade às propostas de reflexão que têm estado no cerne do seu trabalho – a representação contemporânea da paisagem como forma de sintetizar a experiência e a memória do lugar, como forma de cartografia do Eu, como forma de auto-reflexão -, no entanto, estas propostas surgem-nos ainda mais amadurecidas, mais sólidas, com uma força que parece residir na sua capacidade de nos remeter para um mundo interior, para um diálogo entre memórias de paisagem e paisagem de memórias. A colaboração de Sofia Assalino em duas peças de Rita Carreiro é, mais uma vez, muito interessante e, principalmente, pertinente. A intervenção de Sofia caracterizou-se pela introdução de um elemento que nos remete para uma paisagem urbana e parece direccionar-nos para uma metáfora da dicotomia natural/cultural. Nestas peças, Sofia sublinha a necessidade de apresentar o facto natural na sua multiplicidade constitutiva, introduzindo, desta forma, uma questão ao trabalho de Rita Carreiro: a dos elementos construídos na paisagem.
CASTRO, Laura – Paisagens. Porto: Edições Afrontamento, 2007 MADERUELO, Javier – El paisage: genesis de un concepto. Madrid: Abada Editores, 2006 SCHAMA, Simon – Le paysage et la mémoire. Paris: Seuil, 1999 SPIRN, Anne Whiston – The language of landscape. New Haven: Yale university Press, 1998
Raquel Guerra Maio 2011