I
No seu ensaio de 1935 sobre mimetismo animal intitulado “Mimetismo e Psicastenia Lendária”, Roger Caillois começa por mostrar as insuficiências das teorias da auto defesa e da evolução natural para a compreensão deste fenómeno, e prefere a estes pontos de vista “funcionalistas” uma abordagem que podemos classificar de psicologia animal na area da biologia comparada. Roger Caillois fala de fascinação do organism pelo meio, conducente a uma perturbação da percepção do espaço. “O sentimento de personalidade, enquanto sentimento de distinção do organismo com o meio, (…) não tarda nestas condições, a ser gravemente deteriorado, entra-se então na psicologia da psicastenia”, mais precisamente da psicastenia lendária, termos proposto pelo psiquiatra Pierre Janet para classificar as perturbações da distinção entre a personalidade e o espaço diagnosticadas em alguns dos seus pacientes.
Neste processo de despersonalização por identificação com o meio, que o mimetismo realiza morfologicamente em certas espécies de animais, “O indivíduo franqueia a fronteira de uma pele e mora do outro lado dos sentidos”. Ainda nas palavras de Caillois, “O espaço parece a estes espíritos desapossados, uma potência devoradora”.
Este processo de abandono está intimamente ligado ao poder mágico da noite e da obscuridade, o medo do escuro. Minkowski, citado por Caillois, traça a distinção entre espaço claro e espaço negro e divisa na obscuridade uma espessura replete : “O eu é permeável para a obscuridade ao passo que para a luz não o é”. Ainda nas palavras de Minkowski, “O espaço negro envolve-me por todos os lados e é muito mais penetrante em mim do que o espaço claro”. Esta identificação com o espaço, conclui Caillois, é acompanhada necessariamente por uma diminuição do sentimento da personalidade e da vida.
Podemos então encarar o indivíduo como um espaço de incerteza e de obscuridade, sentida como uma terrível ameaça. Assim, a ocultação mimética surge como um espaço de tranquilidade apaziguadora. Este character apaziguador é ainda reforçado pelo privilégio que neste processo se concede à visão, onde se pode detector o anseio por uma pureza óptica destacada do corpo.
II
No Museu Ludwig de Colónia, está exposta uma tela de Ernst Ludwig Kirchner cuja inserção neste contexto pode parecer pouco evidente.
Trata-se de um conjunto de árvores tratadas sumariamente, cobertas pela neve, que libertam um halo violeta contra um céu verde. Esta paleta marcadamente psicológica, entra em ruptura com a representação convencional e configura a tendência comum a toda a paisagem expressionista de projectar na natureza uma subjectividade dramatizada, que em pintura toma forma mediante um jogo do corpo; o quadro é um lugar de gestos que realizam na matéria aquilo que para o autor já não é suportável, mesmo que essa tensão só se defina e dê a ver depois de fixa na tela.
Aqui é o sujeito que invade o espaço com a sua obscuridade (ou luz enferma) projectando em tudo os fantasmas do seu drama, num impulso de detumescência que procura o alívio espasmódico de uma tensão acumulada.
Se isto pode parecer o oposto do mimetismo, está ainda assim refém dessa erosão dos limites do corpo em que o sentimento de personalidade vê deteriorar as condições da sua autonomia.
III
As duas situações acima apresentadas oferecem-se como possibilidades de enquadrar alguma da prática artística actual, que me parece ter afinidade com os trabalhos aqui apresentados, embora se imponha o alerta contra a tentação de extrair delas alusões directas ou definições abusivas.
Feita esta ressalva, diria que estes quadros realizam a cenografia impassível de um drama sem protagonistas. Na rigidez prisional destas estruturas laboriosamente construídas, esconde-se uma tensão silenciosa e ensimesmada. Um alheamento espectral percorre esta floresta de incertezas, como luz entre folhagens, desprendendo do profundo luminoso da verdura uma vibração óptica inquietante.
Esta pintura, à margem do exercício rigoroso da sua autonomia, comunica por pequenos sinais, jogos de linhas, pormenores de cor, que, de tão discretos, se reservam apenas para os mais atentos e de tão delicados, não se deixam nomear. No entanto, não ignora o que perdeu no decurso da História, enquanto linguagem artística. Circunscrita à repetição de processos seus, que muitos consideram anacrónicos e sem sentido, apresenta-se despojada de elementos que iludam a sua condição. Essa consciência dos seus próprios limites traduz-se num diálogo consigo mesma desenvolvido com a sobriedade rigorosa comum a alguma da actual pintura abstracta que, ao contrário de muitos discursos artísticos contemporâneos, não se compraz na encenação estéril do seu esgotamento.
IV
Concluo com uma referência ao louva-a-deus, animal mimético por excelência, tal como é apresentado por Caillois.
O louva-a-deus não só toma a forma dos galhos onde pousa como, para lá desse embuste visual, assume uma imobilidade total destinada a fazer crer aos seus predadores que nenhum resto de vida o percorre. O que é mais surpreendente é o facto de, mesmo decapitado, poder continuar como um autómato ou um espectro, a imitar as funções da vida, andando, procurando comida, construindo o ninho, chegando mesmo ao extremo desconcertante de entrar numa falsa imobilidade cadavéria face ao perigo. Podemos ver a condição actual da pintura neste animal que, nas palavras de Caillois, “Morto, pode simular a morte”. Neste jogo letal, cabe ao observador apurar-se na detecção de vestígios, correndo o risco de se perder num espaço primático e evasivo.
João Rodrigues
Abril de 2002