Natureza e Repetição. Taxonomia e Colecção.

Natureza e Repetição. Taxonomia e Colecção.

 

      Não há duas palavras, nem dois conceitos que, na história simbólica, mais afastados apareçam – Natureza e Repetição. A Natureza é por definição irreproduzível, irrepetível, é, em suma, uma singularidade. Não há duas árvores iguais, não há dois troncos iguais, não há dois ramos iguais, não há duas folhas iguais, não há duas flores iguais (para não sairmos do universo vegetal que configura esta exposição). E no entanto uma árvore é uma árvore e nós sabemos que uma árvore é uma árvore, por muito diferente que seja da outra árvore, e conseguimos distinguir uma árvore dum tronco e um tronco de uma flor e uma flor duma folha (quase sempre).

      Apesar de todas as árvores, de todos os troncos, de todas as folhas, de todas as flores, serem diferentes, são todas iguais. Como se houvesse dentro deles uma singularidade colectiva, um “atractor estranho“ que desse a essas naturezas uma possibilidade infinita da variações dentro de um espaço finito de representações. Isto é “teoria do caos”, mas funciona aqui para explicar a ideia de padrão, a ideia de repetição variada. Do esplendor da diferença no universo da semelhança.

      É da Natureza como padrão, como invariante no contexto da diferença, que esta exposição de Rita Carreiro trata. A natureza é, aqui, quase um papel de parede que poderia replicar indefinidamente, cobrindo todos os cantos da casa (como de facto acontece nos cantos da galeria). E o espaço de arte aparece, assim, como o avesso da floresta. As grandes telas, os cantos pintados, e essas estranhas estruturas (caixas com espelhos) que capturam o observador e o incorporam no seio do discurso, recriam um ambiente falsamente verde, como se estivéssemos perante uma situação de natureza artificial – outro oximoro que continua a situar este trabalho no seio dessa tensão.

      O sistema nervoso central organizou-se a partir da gestão entre o particular e o universal, o mesmo e o outro, enquanto procurava no mesmo o outro e no outro o mesmo. Diferença e repetição (como em Deleuze) são, desta forma, duas chaves articuladas para compreender a natureza da Natureza .Natureza e repetição remetem ainda para outro conceito, o conceito de colecção. Uma colecção é um conjunto de múltiplos diferentes -iguais, é um conjunto de pequenas diferenças ( de pequenos diferentes ) num território de semelhanças. Uma das últimas exposições de Rita Carreiro constituía-se a partir de uma colecção de insectos que a artista desmembrava para de seguida reorganizar, reagrupar, não já em função de pressupostos biológicos, mas estéticos.

      A obsessão taxonómica do século XIX, ganhava uma euforia perturbante na imagem do coleccionador de insectos (particularmente de borboletas). O coleccionador (romântico) vivia obcecado com o espécime em falta. Era todo um sentido para toda uma vida: procurar o diferente no universo das semelhanças, no universo da colecção.

      Ao construir estes padrões vegetais e ao inundar o espaço com essas repetições, Rita Carreiro aproxima-se da ideia perturbante de uma natureza clonável, onde a variação pode ser controlada e até anulada, em nome de um universo previsível e domesticável. Porque, de facto, não há nada mais doméstico do que o papel de parede: ele próprio a ilusão da diferença, da cor e da variação no contexto da repetição.

 

 

Paulo Cunha e Silva
Porto, Junho 2001