Artificialia / Naturalia

Artificialia / Naturalia

 

“…Nada há que eu não conheça, que eu não saiba, E nada, não, ainda há por que eu não espere Como de quem ser vida é ter destino.”
[Jorge de Sena – Poesia I, Lisboa, Edições 70, 1988]

“…O que acontece leva tal dianteira
sobre o  que supomos, que nunca o alcançamos
e nunca chegamos a saber como foi realmente.”
[Rainer Marie Rilke, “Livro Primeiro – Livro da vida monástica” (1899) in
Poemas – as elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, Lisboa, Oiro do Dia, 1983, p.139]

 

 

Foi numa noite escura. As montanhas desmembraram-se em episódios de paisagens sozinhas. Rochedos para um lado, escarpas para outro: tudo parecia perder-se e espalmar-se contra a terra, revolucionando as expetativas de que as montanhas permanecem e só em última instância se dispersam. Os caminhos sinuosos que contornavam as colinas ficaram suspensos, em levitação, contrariando a gravidade. Tornaram-se linhas e traços negros deitados em nuvens de tempestade grave. Descansaram-se e, pela primeira vez, celebraram a queda da volumetria e da modelação. Eram energia, sem ação, sem movimento: sossego, repouso e paragem ou cessação, tudo calado em imagens ronronando para não serem consideradas mudas. Havia vapor a subir pelas arestas rebatidas. Na captação de imagem o avião que havia sobrevoado a cena, não se lembrou de ficar. Portanto, não há imagem avião neste tableaux vivant [imaginaire] em estado de suspensão.
Logo após o solstício de Verão, os rochedos, as escarpas e, agora, também os cumes luzidios, reencontraram-se em pequenos cenários revigorados: estavam desenrolados, abaixo das quedas de água. Magicamente, as montanhas aos pedaços, ergueram-se e criaram-se de novo ainda mais altas. Era como se os braços, pernas, pescoços e olhos de um gigante desarticulado se reunissem de novo. O gigante “não se chamava Atlas, apenas carregava montanhas às costas, nunca seria capaz de arcar com um mundo redondo e todo.
Convém que estejamos bem longe dos tempos de Atlas, dos deuses e demais personagens, para melhor acrescentar veracidade Como se lê no “Propósito” de A Montanha Mágica de Thomas Mann: “é necessário que as histórias já se tenham passado. Poderíamos até dizer que, quanto mais se distanciam do presente, melhor corresponderão à sua qualidade essencial e mais adequadas serão ao narrador, este mago que evoca o pretérito.”1
O mundo não era redondo. Possuía formas irregulares; estivera demasiado tempo à espera de que os pedaços soltos se encaixassem. Essas arestas e esquinas de pedra eram instantes de ansiedade congelada e descolorida. As cores das rochas desbotaram com o sol a pique e as montanhas reinventadas afinal eram negras como breu, pois as águas da última tempestade estavam carregadas de noite no fim dos caminhos. Por outro lado, sabe-se que tinham estado tanto tempo, por ali a pensar tanta coisa, que a tinta transbordara como se fosse sangue desde o início dos tempos. Na realidade, as montanhas, reunidas desse mundo novo, eram em formato de cordilheira, induzindo coreografias lentas onde os gestos coagulavam. Hieráticos, os cumes queriam-se tão sozinhos que congelaram as águas em redor. Assim não haveria interrupções nas conversas em que previam destinar quais os mundos a seguir.

 

 

Thomas Mann, “Propósito”, Montanha Mágica, p. 3 in https://teceresteares.files.wordpress.com/2011/12/thomas-mann-a-montanha-mc3a1gica.pdf  

 

“O caminho da Montanha Fria é risível
Não tem marcas de carros ou cavalos
Torrentes ligadas difíceis meandros
Picos amontoados que se repetem
O orvalho chora sobre mil plantas
O vento murmura sobre iguais pinheiros
Algures perdido o caminho
A forma interroga a sombra: a partir de quê?”
[O vagabundo do Dharma – 25 poemas de Han-Shan,
Caligrafias de Li Kwok-Wing, tradução do chinês de Jacques Pimpaneau, versões poéticas de Ana Hatherly, p.34]

A montanha mais negra subiu; equilibrou-se na plataforma de gelo e ficou a olhar os campos verdes, as japoneiras. Tudo era demasiado natural. Havia que acrescentar algum artifício pitoresco. Inventou uma fonte para compor a paisagem. Arrepiou-se com a sua capacidade em acreditas nos mundos imaginários que percebeu podia autorizar-se designar. Quis proteger-se do vento e da chuva – os mundos recentes, as montanhas que se reencarnam, não podem arrefecer de repente. Como que clamando, mesmo providenciando um clima mais ameno, e de imprevisto, caiu-lhe em cima um teto transparente, feito de gelo extremamente fino e luzindo azul e transparência para o céu. Conclui-se e dormiu – Artificialia.
Os outros episódios, ou seja, os outros cumes, seguiriam rumos diferentes. Não mais quiseram ser volumosos, espalmaram-se subtilmente. Eram sublimes. Eram grandiosos e dinâmicos, como Kant os ensinara a pensar – de forma desinteressada, quiçá. Desdobravam-se, retorciam-se em imensidões, assim se refletindo para todos os lados. Espelhavam encostas e árvores inclinadas como se fossem paredes angulosas, estarrecidas e de costas voltadas entre si.
E foram caminhando em mais e mais desenhos e pinturas pelos mundos imaginários adiante. Procuraram reencontros tardios em ângulos desconfortáveis mas frutíferos. E fugiam, umas e uns de si e dos demais. Mas viam-se sempre desdobrados, à moda de pli, como dizia Deleuze.
Cansados, estes episódios de cor fria de pouca luz diurna, regimentaram a sua condição estoica: não, não seriam mais partícipes da Naturalia.
Há montanhas com neve, desenhos com frio e linhas que deslizem com a geada da madrugada. A luz é baça, apesar de estarmos na cidade. Por isso é que os mundos dos desenhos são imaginários. As luzes também recortam os contornos das coisas reais.

 

 

Então, 4 desenhos recortaram-se do fundo de cena que era um céu imenso. Cada um dos quatro quis ser ponto cardeal. Um olhou para o mar onde o sol tinha estado a durar pouco. O segundo virou-lhe as costas e ficou à espera que a manhã espevitasse. Afastara-se tanto que mudara de casa. O terceiro, para que Um não restara sozinho, aproximou-se como se delineasse passos de tango enredado. Por cautela não se colou à parede lado a lado, desceu-se um pouco mas espreitando uma janela comprida à sua direita. O quarto apressou-se a encontrar o segundo que subira – em passo arrastado e lesto, veja-se o paradoxo – a estrada até ao Palácio dos Carrancas.

 

Encontraram-se próximos da montanha negra que acreditava estar sozinha em frente à paisagem de Artificialia. Não mais. Os desenhos recortados conservavam poças de água congelada, ganhando profundida ilusória. Colocaram-se dogmáticos e frios. Estoicos, na realidade eram muito estoicos. Séneca gostaria de os conhecer.
Paraísos, mundos imaginários…fossem eles Naturalia ou Artificialia, são a visão háptica, confirmando que a visão redonda é o todo.

“O pequeno é como o grande.
O que está em cima é análogo ao que está em baixo.
O interior é como o exterior das coisas.
Tudo está em tudo.”
[Hermes Trimegisto citado por Almada Negreiros in Invenção do Dia Claro, 1921]

Herman Hesse deambulou pelas montanhas com método e rigor de observador-poeta. Wanderer, aquele que a montanha obriga a subir e descer, incessante e compulsivo na sua missão avisada na natureza. A natureza que a montanha eleva até à casa dos deuses e a poesia celebra, tanto quanto a pintura ou o desenho convertendo-se em “impressão” tridimensionalizada, assim alcançando um estatuto que nunca se imaginou pudesse existir. As montanhas são seres velhíssimos e seres atuais.
As montanhas preferiram, séculos mais tarde, divagar [=vaguear] pelo mundo imaginário – que, então, era já singular – continuam a navegar na lentidão e na quietude da luz esmorecida do Norte.

“Os homens do nosso tempo procuram a estrada das nuvens
A estrada das nuvens é sombria silenciosa sem marcas
As altas montanhas são perigosas e escarpadas
Nos altos vales são raros os tinidos
Há verdes picos de todos os lados
Nuvens brancas tanto a oeste com a leste
Quereis saber onde se encontra a estrada das nuvens?
A estrada das nuvens é o vazio”
O vagabundo do Dharma – 25 poemas de Han-Shan,
Op.cit, p.54

 

Ação estética quase instantânea
– parte 10 – Rita Carreiro

 

Museu Nacional Soares dos Reis

[“…Para o Museu Nacional de Soares dos Reis, Rita Carreiro concebeu obras específicas, criou intervenções que são “ações estéticas quase instantâneas” que esperemos se demorem um pouco mais. Assim melhor se contemplam, sentem e se pensam, sendo como que pequenos mundos (imaginários ou longínquos). Assim, Rita Carreiro quis que estas obras se relacionam-se, bem diretamente, aos tópicos vistos e/ou intuídos, aqueles que identificou ao longo dos trajetos que realizou pelas consecutivas salas do Museu, quando das visitas preparatórias. Conciliou as temáticas tratadas na sua mais recente produção, encenando-as em formatos planos ou modelados – onde a pintura e o desenho são coevos – e, também, sedentarizando-as numa volumetria objetivada, onde imperam visões de uma luz mais fria, porque vista e proveniente da sua permanência no Norte da Europa – Bruxelas. É a luz de Memling, acho.
Das montanhas poderiam ter rolado pedras que se estabeleceram como seixos. Seixos, esses que Fernando Lanhas agarrou, quando das suas caminhadas pela Serra de Valongo em finais dos anos de 1940. São protagonistas calados de boa vizinhança, são mesmo auspiciosos. A pintura que Rita Carreiro fez, estendida como se fosse um dos mapas da humanidade (filogénese) dialoga com o pensamento e diagramas que o Homem dos sete rostos traçou. Longo, distendido é o arco temporal da espécie humana. Abraça o cenário, onde as águas navegam camadas topográficas, estratificando lembranças de cada um.
Black Mountain voltou, como um diamante em bruto. É um tempo de respiração prolongada, onde os sonhos dos visitantes podem descansar; onde se isolam ideias e tranquilizam instantes. A montanha absorveu tantas coisas que viu, ficou tão preenchida por detalhes, acumulando tanta e tanta profusão sobreposta, que se apagaram as cores e restou uma substância viva e densa, metafísica e negra.

 

 

Os desenhos recortados, a tela que é uma veduta atualizando a condição estética da paisagem, o scroll que desce pela parede adjacente ao Jardim das Camélias e a tela que partilha o seu habitáculo são episódios de uma Artificialia versus Naturalia quase infinita.”]

 

 

Fátima Lambert
2016