Há coisas que se agarram a nós e nunca mais nos largam

Há coisas que se agarram a nós e nunca mais nos largam

Desde tempos imemoriais que o Homem sentiu necessidade de pertencer – pertencer a um grupo, a uma comunidade, a um local. Para tal desenvolveu estratégias de identificação que lhe permitiram reconhecer os seus pares. Desenvolveu até vários níveis de identidade: jurídica, nacional, cultural.

A contemporaneidade trouxe-nos a globalização, que permitiu, entre outras mais-valias, essa coisa extraordinária que é a facilidade de mobilidade. No entanto, também perdemos – perdemos algo que provavelmente terá custado ao Humano séculos de conquista, isto é, perdemos algo que nos fazia sentir seguros, confortáveis – a identificação com um local, com uma comunidade, com uma cultura. Caímos por vezes, como definiu Lipovetsy, na “Era do Vazio”. É um vazio identitário (às vezes ideológico) que caracteriza a sociedade ocidental contemporânea. Como afirma Lipovetsky “o homem livre é também móvel (…). A sua existência está votada à indeterminação e à contradição. O processo de construção da identidade, outrora ritualizado, permitindo ao indivíduo de forma não problemática saber quem era, e como se posicionar no seio do seu grupo, é agora complexificado pela diversidade de opções e possibilidades. A identidade transforma-se num problema”.

Neste contexto ganha particular interesse o facto de Rita Carreiro colocar no centro da reflexão do seu trabalho o conceito de identidade. Na exposição “Lugares Mutantis” , Rita Carreiro não cai num qualquer facilitismo de nos apresentar trabalhos de registo etnográfico, o que foi procurado foi o encontro dos seus pressupostos criativos com essa fonte de inspiração temática.

A artista constrói a exposição a partir de uma memória de paisagem fixada num variado leque de experiências e sensações, para, a partir daí, sintetizar visualmente estruturas iconográficas. As suas pinturas, desenhos ou esculturas correspondem a uma paisagem que Rita transporta na memória e parecem remeter para um local da sua infância – os Açores (por exemplos nas peças Ilhas). As suas Paisagens Portáteis (à semelhança dos Registos religiosos que lhes serviram de motivo de inspiração conceptual) alertam-nos para essa necessidade tão humana de nos rodearmos de objectos que nos são familiares e, portanto, com os quais nos identificamos.

Particularmente interessante é a colaboração/cumplicidade entre Rita Carreiro e Sofia Assalino em três peças da presente exposição. A intervenção de Sofia nas Ilhas de Rita (peças em linho- de produção familiar – e em papel) passa por bordar ou pintar novos elementos nessas obras. Com esta simples mas eficaz acção Sofia cria uma nova paisagem, ou melhor, transforma a paisagem existente, fruto da memória de Rita Carreiro, e apresenta-nos a sua perspectiva da paisagem, transformando-a.

O projecto Lugares Mutantis de Rita Carreiro desenvolve-se enquanto tentativa de transporte do passado (memória) para a actualidade, situando-se nesse lugar quase fantasmático que fica entre a memória e o prognóstico – porque há coisas (memórias, objectos…) que queremos sempre connosco, mas mesmo que não as quiséssemos, elas agarram-se a nós e nunca mais nos largam.

 

 

LIPOVETSKY, Gilles – A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo.
Tradução de Miguel Serras Pereira, Ana Luísa Faria. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1989

LYOTARD, Jean-François – A condição pós-moderna.
Tradução de José Bragança de Miranda. Lisboa: Gradiva, 1984

 

Raquel Guerra
Agosto / Setembro de 2010