Árvores na Paisagem

Árvores na Paisagem

 

“O que se vê está”
“Por trás das árvores há um outro mundo, o rio traz-me as queixas,
O rio traz-me os sonhos, o rio fica silente quando eu, à noite, nas florestas,
Sonho com o Norte (…) Por trás das árvores há um outro mundo, eles descem
Em longos sulcos para as aldeias, para as florestas dos milénios, amanhã
Perguntam por mim…” A paisagem em volta esvaziada de sentido,
Reflectindo-se nos meus olhos, brotava dentro de mim…” 1

 

A pintura de Rita Carreiro impele-nos a recordar alguns pressupostos associados à concepção de “paisagem” no âmbito da cultura europeia e muito em particular no que se refere às respectivas e várias manifestações picturais.
Com o Renascimento, a paisagem passou a construir, em “escorço” e em decisão final, uma maneira aproximativa à reprodução científica do mundo, assumindo um carácter de imagem documental, fiel e permanente.
A paisagem serviu como ponto de partida a uma pesquisa específica, cujos problemas estavam, em parte, ligados aos da óptica, da botânica ou da física, mas conservando o carácter da sua particularidade estética.
Os contributos científicos vieram consolidar a pintura num patamar cognoscitivo superior, ascendendo ao nível das ciências legislativas. Admita-se-lhe uma categoria que transcendia a técnica como fim em si, conformando-se a partir de uma panóplia de conhecimentos especializados, convergindo para a produção pictural

“Não há neblinas de arte nem do espaço alegre as cores!“ 2

Nesse tempo, datado a partir quattrocentto, aparentemente a paisagem servia para enfatizar os retratados, as pessoas cuja memória se queria, por um outro motivo, preservar, protelar. Mas, atendendo bem ao olhar em pormenor, observavam-se rios e montanhas, prados e nuvens e tudo o mais que a razão sabe da natureza visível. Em manhãs (antigas) nubladas, anoiteceres (nítido e) submissos, expõe-se a sabedoria da luz e das sombras que, com mestria, então (e depois) se venerava: panoramas distantes…

“Como Rembrandt, mártir do claro-escuro,
Mergulhei muito tempo e emudeci.“ 3

E, assim, nos tempos que se lhe seguiu os demais artistas – maneiristas, barrocos e clássicos – souberam desenvolver caminhos em que pessoas e paisagens se estimulavam em sonhos mais ou menos fundados em narrativas da terra dos vivos e das terras dos deuses fossem o que fossem.

“…É como a manhã. Os olhos sugerem-me
todos os céus distantes daquelas manhãs antigas.
E tem nos olhos um firme propósito: a luz mais nítida
que a manhã jamais teve nestas montanhas.
Criei-a do fundo de todas as coisas
que me são queridas e não consigo compreendê-la.” 4

Durante o séc. XVII, por influência do Classicismo Francês, desenvolveram-se estudos da autoria de André Felibien ou do próprio Nicolas Poussin 5, sobre as condições e directrizes da pintura. A organização, a definição composicional de paisagem, à semelhança do que aconteceu com outros géneros pictóricos (o retrato designadamente) cedeu lugar a juízos de carácter intuitivo, raramente a juízos de natureza histórica. Estes viriam a repercutir muito para além do seu tempo de formulação, insinuando-se em linguagens distintivas e bem distanciadas. O estudo das ideias e dos princípios da composição ficaram por concluir, abertos a posteriores estipulações quer normativas, quer hermenêuticas.
Tomada como objecto de representação precisamente a partir do séc. XVII, só se tornou sujeito dessa mesma pintura, quando penetrou nos domínios dos estudos científicos esclarecidos.
Os estudos de árvores – desenhos e aguarelas a sépia – de Claude Lorrain primeiro, assim como os de Théodore Rousseau ou os de Corot depois, prosseguiram a tradição da observação minuciosa e selectiva dos elementos vegetais da natureza, dissecando-os, anatomizando-os para os reconstruir finalmente.
Com a generalização funcional de procedimentos fotográficos, a perseguida utopia de possuir o real, libertou a pintura, tornando-a disponível para outras vias exploratórias. As temáticas subjacentes à paisagem como género foram substâncias desejáveis e oportunas para a implementação de exercícios visuais: quer pelo lado da fotografia, quer pelo lado da fotografia, quer pelo lado da pintura.
A opção aproximativa a diferentes ângulos e planos, a fruição de elementos naturais destacados do todo considerado ou o distanciamento instituído e deliberado, foram terrenos profícuos, para a revisão plástica da paisagem, experienciada na multiplicidade de linguagens que convieram nas primeiras décadas de 1900.
Mondrian usou com uma clarividência invejável motivos integrantes da paisagem convencional para aceder a formulações então vistas como últimas e quase insuperáveis no caminho da inventividade depurada e geométrica. A árvore, as árvores foram reduzidas à sua essência, trabalhadas ao longo de um processo de maturação estética e pictural, culminante na estrutura gráfica recheada de notações cromáticas basilares. Os ritmos que se desprendiam destas pinturas – em prol de uma abstracção atingida – conformados em linhas rectas e curvas, criaram um roteiro de depuração autognósica.
Chegando às derradeiras décadas do século XX, a abordagem pictural da paisagem, após uma erradicação e ausência conhecidas, implementou uma concepção designada por “paisagem estética”: redimida por argumentatividades éticas, concretizada através de discursos plásticos específicos e sustentada pela oscilação de um gosto convertido na rede da pintura revalidada.

“Eu desenrolo lentamente as pinturas, e enquanto as observo,
avanço numa extensão sem limites que me envolve por todos os lados e
que me abre para um sentimento de infinito inspirado pelo céu.” 6

As incursões realizadas de acordo com este conceito de “paisagem estética” reflectia uma intencionalidade efectiva , promovendo uma aproximação por via ironista, da reciclagem filosófica, da metodologia e crítica históricas da picturalidade (incluindo sobre si mesma), mas significou, também, retomar, com propriedade autoral devidamente presente, a própria pintura como sistema. Quando a paisagem não descreve com minúcia e rigor uma ambiência natural específica, está (igualmente) a fornecer uma interpretação que continua a ser dominada pela percepção visual. Procede, recorrendo a uma escolha prévia, determinada por uma percepção intencional e parcial (orientada para um certo ângulo) – o que aliás sucede mesmo quando o objectivo é dar uma representação exacta e documental da natureza.

“Aos olhos dos Anjos, os cimos das árvores
São talvez raízes que bebem os céus:
E, no solo, as raízes profundas de uma faia
Parecem-lhes cumeeiras de silêncio.” 7

A paisagem consolida-se, ao enfatizar elementos (isolados e cúmplices), que se reagrupam consoante as consignações estéticas e estilísticas dominantes: árvores e oceanos, edifícios e sítios, rios e cidades, colinas e montanhas, efeitos atmosféricos…
Uns mais do que outros elementos – acima abordados – foram ressuscitados, na sua singeleza e estrutura, por Rita Carreiro.
Após o tempo da paisagem como cópia, prevalece a concepção da paisagem como invenção: o que implica a fragmentação do espaço envolvente, a fragmentação do horizonte visual – e respectiva eleição trabalhada no plano da imaginação e ideia.
As peças de pintura de Rita Carreiro conhecem-se por:
Não estabelecer uma relação emocional (directa) com a natureza;
Não promover uma visualização demonstrativa sobre efeitos atmosféricos diversificados, motivados (a título de modelo) pela refracção do sol e das sombras atendendo às razões da variabilidade;
Não estipular, por recurso a procedimentos convencionalizados, por exemplo através da vista simulada em planos sucessivos, os níveis capazes de sugerir um espaço tridimensional ou um equilíbrio irrevogável no domínio da composição;
Não pretender a aparência do natural, o exercício habilidoso da representação verista que confunde imagens de diferente tipologia; imagem da percepção visual directa sob a consignação dos fenómenos visíveis naturais com imagem de percepção estética suscitada pela habilidade imitativa da visão do natural;
Não comtemplar a posse mistificada de uma paisagem em que os fenómenos atmosféricos relembrem a presença de homens que se acautelam de intempéries quase divinas;
Não usar as transformações insustentadas das forças da natureza como fonte ou intencionalidade exclusivas;
Não receber contaminações (refinadas) integradas em edifícios clássicos ou vislumbradas em reconstruções arqueológicas;
Não cumprir a simplificação e/ou a utilização de espaços vazios que conduziriam a identidade a um grau de abstracção elevado – contrário ao que Xia Gui, pintor activo entre 1190-1225, realizou;
Não emanar (superficialmente?) das suas paisagens um qualquer desejo de que possuam um carácter votivo estereotipado;
Não guiar as almas por caminhos punitivos, memórias de peregrinações ou celebrar locais sagrados…
Motivam-na motivos exclusivos que se relacionam com a concepção oriental da natureza, tal como nós, os ocidentais, a recebemos, combinamos e extrapolamos, quase a tornamos “nossa”:
O sentido panteísta da natureza que se desdobra e dobra, num envolvimento e dinamismo míticos, até à sublimidade de um transcendentalismo panteísta – evocando (talvez?) linhas poéticas de um Teixeira de Pascoaes filosoficamente pictural;
A inerência estrutural que na “pele/superfície” sabe concentrar o âmago das coisas naturais desocultando assim a sua verdade (Paul Klee)
A atenção focada nos movimentos animados quase imperceptíveis de coisas e seres;
A afirmação de paisagens independentes de quaisquer remissões ou indícios cognitivos directos (Mondrian);
A construção de cenários planificados num espaço sem dono a quem importe delimitar usufruto;
A adesão a imagens longínquas isoladas que existem sozinhas sem suportes alheios ou dependências restritivas;
A impregnação de um dimensionamento cosmológico que insiste em anunciar-se através de certos elementos cromáticos e gráficos quase universais;
A estipulação de uma hierarquia iconográfica evidente, fundada exclusivamente no domínio pictórico;
A insinuação de características afectas a um simbolismo ocultado pela impositividade gráfica e cromática vigentes;
O parentesco hermético com o mapeamento dos eremitérios antigos que dominavam do alto as montanhas e as planícies, os desfiladeiros e florestas, as serpentes de água e seixos;
A explanação panorâmica de certas paisagens comunga com visões internas, motivos hipnagógicos (ou hípnicos) quase;
A familiaridade com a pintura de Mantegna, quando este presentifica fenómenos geológicos que, para serem registados, obrigaram à ascensão inóspita de montes (neste caso metafóricos) certamente inacessíveis;
A visão microscópica que se confronta com a amplitude do olhar estendido sobre o horizonte – uma espécie de breve e suspenso paradoxo;
A ênfase nos pressupostos de crescimento de árvores, em particular, de eucaliptos, plátanos ou salgueiros, essas linhas famintas que se lambuzam de cores.
Donde se conclui que a pintura de Rita Carreiro se desenvolve em prol de uma cartografia de rigor, articulada através de diferentes referencias que a pintora movimenta como propriedade e território individualizados e única.
A instauração de ritmos cromáticos concisos gera efeitos ópticos, proporcionados por reverberações que dinamizam a composição e direccionam os espectadores. Os ritmos visuais resultam de linhas quasi-paralelas…que poderiam simbolizar a inevitabilidade do tempo cronológico, a sue quotidaneidade linear …cronometrada objectivamente …irreversível e sinuosa.
Tratam-se, enfim, de ressonâncias pictóricas, recordando-nos certa polifonia de planos, típica da arte do Extremo-Oriente.
Proporcionando este ambiente, as suas paisagens, longínquas ao nosso reconhecimento, evocam a condição sublime dos elementos, de substâncias, de matérias, não humanos mas orgânicos e vivos.

“Estas são notáveis: cada uma
Ligando-se à seguinte, como se fala
Fosse uma representação imóvel.
(…)
Com ele, tu e eu
Somos de repente o que as árvores tentam
Dizer-nos que somos…” 8

Os mapas da natureza exterior, as árvores e as paisagens de Rita Carreiro transportam a estabilização da estrutura interna pessoal. Provavelmente estão povoadas de árvores imperceptíveis que se propagam e propagam até à dissolução dentro de si mesmas.
(Nalgumas das instalações anteriormente apresentadas – relacionadas com a filosofia da obra agora exposta – Rita Carreiro articula unidades pintadas (paisagens árvores e mapas circulares) com espelhos circulares, geradores de reflexos que deambulam pelas paredes, As telas convertiam-se em unidades de propagação, agregando as substâncias captadas, em suspensão no espaço e naqueles que o habitam.
Nestes casos, promovem-se uma expansão mais radical da desconstrução cognitiva e visual directas, para obrigar a uma montagem perceptiva a concretizar por cada um dos espectadores. A percepção visual é compulsiva, a orientação no espaço consegue ser aleatória, trazendo-nos, todavia, de volta a uma rua de “sentido único”, com que nos seduziu e lamentou Walter Benjamin…)

“S’il est permis de comparer la composition d’un paysage à la structure humaine” 9

A árvore, permitia-se recordá-lo, é fonte simbólica que impregna todas as culturas.
A imagem da árvore possui um papel iconográfico universal. Rica em referenciais dispares e variantes, viaja desde a contextualização mítica (substância e matriz diversificadora e comum) até à reinterpretação poética, teológica e filosófica, serviu fins racionais e ultimatos herméticos. Foi sujeito e objecto de cultos, mais ou menos perversos e originários.
Concentra em si as forças cosmogónicas e expele pulsões retóricas.
Sofreu mutações narrativas e pragmáticas – nos domínios artísticos e literários; acudiu às transfigurações das mentalidades, sustentou-as e interrogou-as. Mas, tem permanecido sempre uma imagem indestrutível vigente na imaginação humana.
Árvore sagrada, árvore cósmica, árvore do conhecimento, árvore genealógica, árvore da liberdade, árvore dos mortos é uma forma fálica e matricial simultaneamente.
A árvore é um lugar.

 

1. Thomas Bernhard,”Por trás das árvores há um outro mundo”. Na Terra e no Inferno, Lisboa, Assírio & Alvim,2000, pp.61e ss.
2. Ossip Mandelstam, Guarda minha fala para sempre, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p.217.
3. Ossip Mandelstam,Op. Cit.,p.181.
4. Cesare Pavese- Trabalhar cansa, Lisboa, Ed. Cotovia, 1997.
5. Cf.a propósito Fátima Lambert, “ Joana Rêgo e a paisagem: vais mas voltas”, Guimarães, Galeria Fuga pela escada, Novembro de 2003.
6. Rainer Maria Rilke, Frutos e apontamentos, Lisboa, Relógio de Água, 1996, p.101.
7. John Ashbery, Auto-retrato num espelho convexo, “Algumas árvores”, Lisboa, Relógio d’Água, 1995, p.17.
8. Veja-se do autor mencionado Rua de sentido único e Infância em Berlim por volta de 1900, Lisboa, Relógio d’Água, 1992.
9. Charles Baudelaire, “VII. Le paysage”, «Extrait de la Lettre à M.le Directeur de la Revue Française sur le Salon de 1859», in Revue Frainçaise, Juin/Juillet 1859.

 

(In memoriam de A.V.)

Fátima Lambert
Porto, 19 de Dezembro 2003