Em 2011 afirmei, num texto que escrevi a propósito de uma exposição de Rita Carreiro, que esta era uma das poucas artistas contemporâneas que se dedicava quase exclusivamente à pintura de paisagem. Dez anos volvidos sobre esta afirmação a proposição mantém-se.
Dentro da grande temática paisagem, a montanha (e suas variantes) tem sido um subtema sobre o qual a artista se tem debruçado nos últimos quinze anos de trabalho: A ilha imaginária I (2019), My black mountain (2016), Uma montanha sobre a mão (2016), Cachalote (2015), Falésia (2015), Ilhas pintadas (2011), Ilha e sombra desenhada (2010), Montanhas pintadas (2010), Montanhas (2008), Ilhas (2006), Conjunto de ilhas (2005) – só para nomear algumas obras de uma longa lista que, quer através do título, quer através da forma, nos remetem para esse elemento da paisagem.
Neste contexto, considero particularmente interessante o facto de Rita Carreiro intitular esta exposição de O arquivo da montanha negra, como se a própria se assumisse, de forma categórica, como a guardiã-arquivista de uma memória coletiva de montanha.
Rita Carreiro concentra em si as funções da arquivista e da historiadora. Mas vai muito mais além dessas duas funções, na medida em que produz as fontes/documentos (as obras), as organiza (por séries ou coleções) e as interpreta (expondo-as, criando relações entre elas).
Na exposição O arquivo da montanha negra Rita Carreiro apresenta oito obras produzidas especificamente para a Sput&Nik the Window: uma série de seis pinturas a acrílico sobre papel (O reflexo da montanha a partir de Caspar David Friedrich), uma pintura a acrílico sobre tela (A montanha suspensa) e uma intervenção site specific, a acrílico e carvão, na parede da galeria (Esboço de paisagem).
As seis obras sobre papel, como o título indica, são realizadas a partir da obra High Mountains (1824) de Casper David Friedrich. High Mountains surge, assim, como uma fonte de inspiração poética. Rita Carreiro partilha com este autor, cujo trabalho estudou profundamente, o prazer da pintura de paisagem, usando-a para materializar pensamento e reflexão sobre o seu mundo e o mundo que a rodeia. A pintura de Rita Carreiro, como a de Casper David Friedrich, com as suas atmosferas taciturnas, as suas brumas ou os seus efeitos, por vezes dramáticos, de luz está carregada de simbolismo.
Um aspeto que me intriga (e que, confesso, me fascina) nesta série de trabalhos da autora é a presença de uma certa ideia de reflexo em todos eles. O reflexo, ou imagem especular, define a fronteira entre o real e o simbólico (ou imaginário). A imagem (da montanha) refletida inversamente no plano inferior da obra funciona como uma metáfora do (seu?) mundo às avessas.
No que diz respeito ao avesso não consigo deixar de pensar no O falso espelho (1928), de René Magritte, autor tão caro a Rita Carreiro. A artista aplica tão bem alguns dos jogos propostos por Magritte…
Por definição a imagem refletida possui todas as propriedades do objeto representado, funcionando a imagem como um duplo do objeto. Nos reflexos de Rita Carreiro tal não acontece. No seu caso, a imagem especular não duplica o objeto representado, concretamente a montanha. O que se vê refletido não corresponde exatamente ao que se vê no plano superior da obra.
Estamos no domínio do simbólico, no campo da ambiguidade e da paisagem mental. Os obstáculos (vou chamar desta forma à “deformação” entre o objeto e o seu reflexo) dificultam a apreensão do conteúdo invisual da obra e impõem esforços interpretativos. Rita Carreiro pinta o que vê diante de si (a montanha), mas pinta também o que está dentro de si (o reflexo). Se este reflexo fosse uma palavra, ele seria a palavra “eu”.
Rita Carreiro assume Esboço de paisagem como um reflexo de A montanha suspensa. Portanto, todas as considerações elencadas nos parágrafos anteriores sobre a questão do reflexo são igualmente válidas para estas duas obras.
Então, o que é que a autora nos propõe (ou acrescenta) de diferente nestas duas obras? Primeiro, e começando pelo óbvio: o suporte – num caso a tela, noutro caso a parede. Segundo: o reflexo é apresentado em frente ao objeto representado (e não inversamente no plano inferior da obra). Terceiro: de todos os reflexos propostos nesta exposição, este será o mais verista de todos.
Ao transferir o reflexo da montanha do plano inferior da obra para a posição defronte da mesma, esta montanha parece sustentar-se no ar. Entramos novamente no domínio da metáfora, já que uma montanha suspensa será impossível de encontrar no campo da visualidade.
Por ser o mais verista dos reflexos será Esboço de paisagem o que melhor reflete a invisualidade do objeto Montanha suspensa? Só Rita Carreiro poderá responder.
A única certeza que temos (ou que, pelo menos, eu tenho) é que a ideia de reflexo esteve sempre associada à ideia de enigma e mistério. E parece-me que assim continuará.
Raquel Guerra
2021
Referências bibliográficas:
Borsch-Supan, Helmut – Caspar David Friedrich. London: Thames & Hudson Ltd. 1974
Eco, Umberto – Sobre os espelhos e outros ensaios. Lisboa: Relógio D’Água. 2016
Foucault, Michel – As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa: Edições 70. [D.l. 1998]
Vidal, Carlos – Invisualidade da pintura: uma história de Giotto a Bruce Nauman. Lisboa: Fenda Edições. 2015